O lançamento de Despreparado? Nunca! em português, me pegou de surpresa. Primeiro, porque ouvi falar dele, e, quando eu notei, já estava disponível.* Segundo, porque se trata de um livro “sobre” RPG, e não “de” RPG. O segundo que conheço em língua portuguesa, no Brasil. Antes de mais nada, meus sinceros parabéns para a editora Pensamento Coletivo!
O Role-playing game (RPG) vem sendo cada vez menos praticado, perdendo espaço a cada dia para os Jogos de Tabuleiro, por exemplo. Um dos principais motivos, ao meu ver, é a dificuldade em reunir as mesmas 4 a 6 pessoas de uma só vez, em um só lugar. Encontros por ferramentas de comunicação digital foram utilizados a partir do início deste século, no sentido de se formar e manter estes grupos, mas mesmo assim, a vida cada vez mais complexa, foi tornando até esta prática de reunir, se não no mesmo lugar, na mesma hora, o mesmo grupo, muito difícil.
Quando comecei a jogar RPG, eu tinha 13 ou 14 anos. Meu primeiro contato foi através dos livros interativos, depois, pela aquisição da caixa inicial de Dungeon and Dragons. E, como Ethan Gilsdorf fala em seu livro Tudo o que um geek deve saber, era um escapismo para mundos paralelos, até mais perigosos do que vivemos, mas que “pelo menos havia um manual de regras“.
Os RPGs realmente são escritos de forma a que quem o leia, e jogue, tenha acesso a muita informação. Cenário e Regras são, em geral, muito detalhados. RPGs bem sucedidos, como Dungeon and Dragons, Vampiro: A máscara, Gurps, Tormenta, tem seus livros básicos sucedidos por diversos suplementos. E, embora, seja um jogo no campo da imaginação, informação é o que não falta para um mestre, ou para um jogador.
Entretanto, os livros básicos (mestre/narrador ou jogador)* tem apenas um capítulo e alguns trechos sobre como jogar ou como mestrar/narrar. Em Despreparado? Nunca! encontramos uma leitura, não opcional, mas obrigatória, para desenvolver-se como mestre, justamente, por ser uma obra ímpar totalmente voltada para o tema.
O autor é Phil Vecchione, um bom nome para um NPC da máfia italiana em alguma cidade norte-americana, mas que na verdade é um “marido, pai e gerente de projetos” comum. Escritor e editor do GnomeStew e autor na Engine Publishing, Phil divide seu livro em três partes principais:
1) Entendendo a preparação;
2) Caixa de Ferramentas de preparação;
3) Desenvolvendo seu estilo.
No primeiro tópico, Phil disserta sobre o conceito de “Preparação” e fala sobre as fases da mesma. O autor começa logo pela Meta. Afinal, prepara-se para o quê?
A meta da preparação é dar ao Mestre um certo nível de conforto, através do entendimento de que toda informação que ele precisa para narrar o jogo sem problemas está prontamente acessível.
Prosseguindo, o autor divide a preparação em fases distintas:
1) Brainstorm (Tempestade cerebral – onde lançamos ideias ao ar sem limites)
2) Seleção (Onde escolhemos uma ou mais ideias)
3) Conceitualização (Quando expandimos uma ideia, e a descrevemos usando a lógica)
4) Documentação (Anotações preciosas a serem utilizadas durante a aventura)
5) Revisão (reler tudo, acertar arrestas, finalizar)
Como é nossa intenção divulgar o livro, não vou prolongar muito nas descrições, mas creio que pode notar a preocupação científica (no sentido acadêmico do termo) do autor, em criar um método, onde só havia boa vontade e criatividade, para quem se propõe a criar e desenvolver uma aventura.
Como um bom mestre, Phil permite ao autor, através de questionários, se auto-avaliar diversas vezes durante o livro, de forma progressiva, de modo que a construção do conhecimento, seja progressiva, obedecendo as regras da didática.
Na segunda parte do livro, o autor descreve a Caixa de Ferramentas de preparação. Como toda boa caixa de ferramentas, ela é deve ser bem variada. E ele descreve o uso das mesmas, inclusive as eletrônicas. Logo após o autor revela suas “Referêcias e Inspirações“, e, quem sabe, possamos também beber destas fontes de conhecimento.
Finalmente, o livro trás um inesperado e fundamental estudo sobre o uso do Tempo. Sim, este terrível e aparentemente imbatível vilão que impediu uma difusão maior do RPG, e atrapalha os grupos já formados. Este é mais assustador vilão de todos os tempos a ser derrotado. E desta vez será uma tarefa árdua, que só será possível com uma combinação perfeita entre mestres e jogadores. Para isso, ele faz um organograma de como utilizar proveitosamente nossa principal arma – a Criatividade.
Em 2013, quando fundei com minha esposa e filha a Toys For Fans, imediatamente desenvolvi um curso sobre como mestrar um RPG. Nossa experiência como mestre é muito ampla***, e eu quis de verdade dividi-la como novos ou mesmo antigos mestres. Infelizmente, em dois anos, só consegui reunir pupilos ou mestres por apenas duas vezes. Mas quem sabe agora, consegui as ferramentas necessárias para desenvolver esta alquimia que é mestrar uma aventura?
Hoje, me vejo muitas vezes como um veterano ranger, que se aposentou e fundou uma taverna, e que, quando reconhecido, conta suas aventuras passadas, para quem por ali passa ouvir, nem sempre com interesse. Mas, Despreparado? Nunca! me fez desejar – e muito! voltar a outros mundos, não mais como um escapismo inconsciente de um adolescente com muitos problemas, buscando forças, mas agora como um entretenimento saudável e lúdico com os amigos, antigos companheiros de aventuras, que sinto muita falta.
Marcus Ferreira – 42 anos, casado, pai, historiador e pesquisador, sócio da Toys For Fans, loja de jogos e colecionáveis localizada na Ilha do Governador (RJ) ligada a Wizards Play Network (loja oficial de Magic the Gathering e Dungeon and Dragons) e a Konami/Copag (Loja oficial do cardgame Pokémon)
Co-autor de Conspiração Dumont, livro interativo lançado pela editora Devir. Trabalhou para a Devir também em três bienais do Livro (RJ,SP), um Encontro Internacional de RPG (SP) e uma Feira Internacional de Quadrinhos (MG) e diversos torneios de Magic the Gathering.
Jogou e mestrou – na ordem – Livros interativos, Dungeon and Dragons, Gurps, Marvel Super Heroes, Mundo das Trevas, Chamado de Cthulhu, Pathfinder, Old Dragon, 3D&T entre outros RPGs. Participou de Live Actions (na ordem) de Era Vitoriana, Vampiro a máscara, Anjos e Demônios (do autor de A Batalha do Apocalipse), Máfia, 7th Sea, Castelo Falkenstein, Vampiro Requiém e Chamado de Cthulhu – quase sempre como o antagonista, mas também uma vez como um mero croupier. Foi um dos mestres do live action de Vampiro a Máscara, Dark Alliance: Rio, onde praticamente eliminou a ligação entre mestres e Npcs, gerando tramas quase exclusivamente entre os próprios jogadores.
Quase todos seus amigos jogam ou jogaram RPG.
* A Toys for Fans entrou em diversos financiamentos coletivos até o momento, apoiando o mercado nacional. Um deles não foi bem sucedido e dois deles sofrem atrasos em sua produção. Como entramos como “Lojistas”, os atrasos comprometem nosso fluxo de caixa.
** Mestre foi o primeiro nome que conheci para quem conduzia aventuras, provavelmente por ser assim chamado em Dungeon and Dragons. Narrador foi o segundo nome que conheci e o que mais usei, talvez por ter outra definição de mestre (artes marciais, professor) e veio a partir do RPG Vampiro: A máscara. Utilizo “Mestre” no texto pois é assim que é chamado pelo autor do livro, seu público-alvo.
*** Fui mestre de 110 jogadores simultaneamente em um projeto de Live Action chamado Dark Alliance: Rio, por dois anos e meio. Finalizado, não por falta de jogadores, mas justamente a de mestres.